Câmara versus seu Secretário

De Memória CVJ
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Em 1882, durante a 4ª Legislatura Monárquica, o secretário Carlos Lange caiu das graças dos vereadores, recebendo acusações e sendo exonerado do seu cargo. Vale lembrar que nessa época os secretários eram empregados, ou seja, o cargo não era ocupado por um vereador, como é atualmente. Inconformado, Carlos recorreu à presidência da Província, que acatou seus argumentos e ordenou à Câmara que reintegrasse seu secretário. Entendendo não ser da alçada da presidência da Província decidir quem seriam seus empregados, e oferecendo novos argumentos a esta, a Câmara Municipal decidiu não acatar a decisão provincial e Carlos Lange não pode reassumir seu posto.

Acusação Inicial e Demissão

Trecho da Ata de 16 de janeiro de 1882: Ou saía Carlos Lange, ou saía Machado da Luz.

Na Sessão de 16 de janeiro de 1882, o vereador Francisco Machado da Luz pôs na mesa uma declaração na qual informava que ele não poderia continuar na vereança enquanto Carlos Lange fosse secretário. Segundo Machado da Luz, o motivo disso era porque Carlos, na condição de testemunha juramentada, havia "alterado as cousas em uma audiência", ou seja, falhado com a verdade.[1] A ata da reunião não é bem clara sobre que audiência era essa, mas na defesa de Carlos Lange, endereçada ao Presidente da Província, ele declarou que a demissão não ocorreu por algo que o desabonasse enquanto no ofício do cargo, mas que era uma perseguição política. Carlos narra que Antônio José Ribeiro tratou de mostrar provas de que foram cometidas irregularidades nas eleições para Deputado Geral (atual deputado federal). No processo que se desenrolou, Carlos Lange foi convocado para depor como testemunha, mas seu testemunho não agradou a Machado da Luz e seus partidários.[2]

Machado pedia sua própria dispensa, mas a Câmara Municipal decidiu que entre o vereador e o secretário, este último era mais dispensável. A pedido de Antonio Sinke e Frederico Jordan, os vereadores realizaram uma votação secreta, recebendo os edis uma cédula para nela escrever "Continua" ou "Demitido". Henrique Walter não gostou do andamento das coisas, disse que era injusta a demissão do secretário e se absteve de participar de tal votação. Com sete vereadores presentes, e sem o voto de Walter, seis cédulas foram recolhidas. Uma delas continha o esquisito voto de "Continua e Demitido" e por isso foi tomada em separado. Das outras cinco cédulas, quatro foram votos de "Demitido" e uma de "Continua". Estava decidido, Carlos Lange fora exonerado. Otto Lauer foi nomeado secretário e juramentado naquela mesma sessão.[1]

Os Irmãos Lange Recorrem ao Presidente da Província

Frederico Lange tenta ajudar seu irmão Carlos.

No período da Monarquia, as Câmaras eram tuteladas pelo poder provincial, não sendo entidades federativas independentes. O Congresso Provincial (Assembleia Legislativa) de Santa Catarina aprovava as contas, o código de posturas municipal e servia como segunda instância em decisões proferidas pela Câmara. Não estando o Congresso reunido, o presidente da província lidava com a questão. Por isso, foi ao Governo da Província que Lange recorreu da decisão da Câmara municipal. Seu recurso, conforme já comentado, tinha a intenção de mostrar que sua demissão se dera por motivos não relacionados à sua atuação como secretário. Carlos entendia que sua demissão era uma vingança política, por seu testemunho em audiência não ter agradado a alguns dos vereadores.[2]

Para buscar tomar uma decisão acertada, o presidente da província precisou ouvir os dois lados. Na Sessão de 21 de Janeiro de 1882, Carlos Lange comunicou à Câmara sobre a interposição de seu recurso. A Câmara respondeu dizendo estar "prompta a dar todas as informações à respeito, ao Exm. Snr. Desembargador Presidente da Província, quando elle o exija (...)"[3] Por fim, o presidente da província enviou o ofício de 31 de janeiro de 1882, oferecendo os argumentos de Lange e pedindo informações à Câmara.[2]

O Vereador Frederico Lange, irmão do ex-secretário, decidiu também intervir e, na condição de vereador, encaminhou sua própria queixa ao governo provincial.[4]

O Governo da Província dá Razão à Carlos Lange

Publicado no jornal Gazeta de Joinville, em 3 de maio de 1882, a resposta do governo da província deu provimento ao recurso interposto por Carlos Lange. Entre os argumentos ofertados pelo governo para embasar a decisão, estava o de que por oito anos de serviço Carlos não recebeu nenhuma advertência nem incorreu em falta. Além disso, o rito seguido não foi o correto: a deliberação pela manutenção ou demissão do funcionário deveria ser precedida de um comunicado por escrito. Além disso, o ofício do governo lembrou que o vereador que o acusou não acompanhou sua declaração com prova alguma. O protesto dos vereadores Henrique Walter e Frederico Lange também foram levados em consideração. Como sabemos, o primeiro considerou no mesmo dia que eram injustas as ações tomadas pela Câmara. O segundo, ausente no dia da demissão de Carlos, encaminhou posteriormente sua queixa, como também já comentamos.

A Câmara precisou emitir uma certidão contendo as faltas ou advertências dadas a Carlos Lange. Se houveram, elas foram verbais. Não estando anotadas nas atas, não foi possível informar tais faltas ao governo provincial. Portanto, a certidão não continha censuras ao ex-secretário. Pesando todos os argumentos, o governo da província mandou imediatamente reintegrar Carlos Lange ao exercício de seu cargo de secretário da Câmara.[5]

Mas a Câmara Decidiu não Acatar

Frederico Jordan (foto) entendia que Carlos Lange deveria ter sido demitido a mais tempo.

Foi na sessão de 17 de abril de 1882 que a Câmara de Vereadores de Joinville analisou a portaria que ordenava a reintegração de Carlos Lange. O presidente Bacellar colocou o assunto em discussão. Eis as manifestações dos vereadores:

  • Henrique Lepper: No seu entender, se a Câmara tinha o direito de empregar, tinha também o direito de demitir quando julgasse conveniente. Ainda mais porque a Câmara era uma instituição de eleitos pelo povo. Se tinha o direito de demitir, tinha ainda mais no caso de Lange, que segundo Lepper, desmereceu a confiança dos vereadores por cometer muitos abusos.[nota 1]
  • Frederico Jordan: Afirmou que não concordava em reintegrar Carlos Lange, visto que a Câmara não poderia funcionar com um funcionário como aquele. Disse que o ex-secretário não merecia confiança e que já devia ter sido demitido a mais tempo. Jordan asseverou que bastava olhar para o arquivo para perceber o desmazelo. No que tangia à ausência de registros de advertências, Jordan lembrou que a Câmara preferia fazer isso de modo verbal, não pondo por escrito para não desmoralizar seus empregados.
  • Machado da Luz: Acrescentou que além das faltas de cumprimento do dever, devia ser acrescentado o fato de que o cargo de Agente de Correio, que Carlos Lange ocupava, o tornava incompatível com o cargo de secretário, porque o trabalho de um prejudicava o expediente no outro; e que se antes a Câmara decidiu fazer vistas grossas, agora não deveria mais mostrar essa complacência.
  • Frederico Lange: O irmão de Carlos recordou aos demais vereadores que a Câmara não tinha competência para decidir se devia ou não acatar uma ordem superior, e que a referida ordem de reintegração do secretário deveria ser executada imediatamente. [6]

A votação

O presidente pôs em votação o caso. Frederico Lange se declarou impedido de votar, por motivo óbvio de parentesco. Walter, que anteriormente dissera ser injusta essa decisão, não estava presente na sessão de 17 de abril. Os demais votaram unanimemente por negar a reintegração. Decidiu-se enviar ao presidente da província novo ofício com "ponderosos e supervenientes" motivos para tal decisão.[6]

A Reação de Frederico Lange

Frederico alegou que enquanto a Câmara municipal desacatava uma autoridade superior, suas deliberações eram ilegais com efeito nulo, e por isso ele iria se retirar do recinto. Nisso contra-argumentou Henrique Lepper, dizendo que Frederico, que já havia se declarado suspeito, não podia vir agora em defesa do irmão e suas declarações não tinham efeito.[6] No dia seguinte, Frederico compareceu à Câmara, mas retirou-se logo após o início da Sessão.[7]

Carlos Lange se Defende Através do Jornal

Carlos Lange se Defende das Acusações (Foto: Acervo do Arquivo Histórico de Joinville.

Não, o ex-secretário não ia deixar assim as acusações a ele reputadas. Através das páginas da Gazeta de Joinville, Carlos Lange emitiu uma declaração para se defender das acusações feitas na Sessão Ordinária de 17 de abril de 1882, publicadas em jornal. Carlos afirmou que, como não havia motivos legais para sua demissão, fato reforçado pelo provimento ao seu recurso por parte do governo da província, a Câmara lançou mão de calúnias para poder descumprir a ordem superior.

  • Acusações de Henrique Lepper: Sobre as acusações de Henrique Lepper, Lange disse que o relato daquele não aconteceu. Não houve prévia comunicação, não houve reunião marcada, mas simplesmente o vereador Rogner, da Comissão de Obras Públicas, apareceu na casa dele de improviso, na manhã em que ele teria que teria que cuidar da expedição das malas postais, como agente do Correio que era. Rogner pediu para Carlos lavrar um termo de contrato, e naquele momento isso não poderia ser feito. Depois, quem apareceu alterado foi o próprio Henrique Lepper dizendo "Você não tem tempo? Eu também não tenho tempo." Em vez de responder grosseiramente, como Lepper afirmou, Carlos disse que respondeu calmamente, afirmando que naquela hora não poderia secretariar um assunto que surgiu repentinamente, já que estava às voltas com o trabalho do correio, mas que logo estaria livre. Segundo seu próprio relato, o secretário não se negou a efetuar o serviço, e o termo foi lavrado depois.
  • Acusações de Frederico Jordan: Jordan afirmara que a Câmara preferia admoestar os funcionários sem registrar por escrito, por isso inexistiam registros de tais admoestações ao ex-secretário. A isso Carlos respondeu que nos oito anos que serviu como secretário muitas admoestações assim foram postas por escrito nas atas. Quem nunca foi censurado, quer publicamente, quer em particular, foi ele mesmo, e só por isso que contra ele inexistiam tais registros. Carlos inclusive desafiou Jordan a mencionar uma só admoestação que Carlos poderia ter recebido, mencionando lugar e motivo. Quanto ao mal estado do arquivo, Carlos disse que ele já tinha pedido à legislatura anterior (chamada de Câmara transacta) um armário mais apropriado ao arquivo. Com isso, Carlos transferiu a responsabilidade do atual estado do arquivo aos próprios vereadores.
  • Acusações de Machado da Luz: Machado da Luz foi quem deu início a esse processo, ao dizer que em juízo Carlos Lange efetuou falso testemunho. A isso, Carlos disse que o governo provincial não encontrou provas trazidas por Machado, por isso seria de esperar que Machado as trouxesse durante a reunião da Câmara de 17 de abril. Machado não as trouxe, porque segundo Carlos elas não existiam. Na ausência das provas, Machado partiu para outra direção, e passou a mencionar a incompatibilidade dos cargos de Carlos acumulava: Secretário da Câmara e Agente do Correio. Não era uma incompatibilidade no sentido estrito, mas os horários de trabalho não poderiam interferir nas obrigações de cada cargo.
Sobre isso, Carlos alegou que as reuniões da Câmara não deixaram de ocorrer por falta de secretário, mas se isso se deu, foi por falta de vereadores, o que hoje chamamos de falta de quórum. Carlos ainda disse que as reuniões da Câmara eram marcadas para uma semana antes da expedição das malas postais, não para ajudá-lo a ter tempo para cumprir as duas funções, mas para que os ofícios e comunicações da Câmara tivessem tempo hábil para serem encaminhados com as malas em tempo oportuno. Não era uma questão de complacência da Câmara para com seu secretário, mas de vantagem para a Câmara em si.

Carlos Lange finalizou sua defesa dizendo que fora vítima de perseguição política.[8] Não sabemos que perseguição poderia ser essa, mas dois dos vereadores que mais o antagonizaram eram conservadores (Machado e Henrique Lepper). Carlos era Liberal e Henrique Walter, que o defendeu, também era, bem como seu irmão Frederico. No entanto, se fosse uma mera perseguição partidária, o liberal Jordan não ajudaria os conservadores a hostilizar Carlos. Além disso, nas discussões e votações envolvendo esse caso, os liberais deveriam ter tido maior engajamento, já que a Câmara tinha uma composição quase "meio a meio".

Ainda assim, curiosamente parece que a perseguição política continuou: quatro anos depois, Francisco Machado da Luz substituiu Carlos Lange no cargo de agente do Correio. Ficker (1965, p.324) relata simplesmente que Lange pediu demissão,[9] enquanto Raquel S.Thiago (1983, p.47) afirma que essa troca se deu pela preponderância política dos conservadores na ocasião, liderados pelo Visconde de Taunay.[10] Se foi como Raquel S.Thiago afirmou, Carlos continuou sendo vítima dos conservadores. Uma inimizade que possivelmente era tão somente a continuação da perseguição iniciada em 1881.

O Governo Provincial Acata as Razões da Câmara

O governo da província volta atrás e dá razão à Câmara.

Por fim, em 10 de Julho de 1882, o Vice-Presidente da Província Joaquim Augusto do Livramento, que interinamente estava na presidência, atendeu às razões alegadas pelos vereadores, e anulou sua decisão anterior que mandava efetuar a reintegração de Carlos.[11]



Pesquisador: Patrik Roger Pinheiro - Historiador | Registro Profissional 181/SC

Como Citar
Referência

PINHEIRO, Patrik Roger. Câmara versus seu Secretário. Memória CVJ, 2024. Disponível em: <https://memoria.camara.joinville.br/index.php?title=C%C3%A2mara_versus_seu_Secret%C3%A1rio>. Acesso em: 29 de abril de 2024.

Citação com autor incluído no texto

PINHEIRO (2024)

Citação com autor não incluído no texto

(PINHEIRO, 2024)

Notas

  1. Lepper havia mencionado como exemplo um caso em que Rogner e ele, na condição de membros da Comissão de Obras Públicas, foram à casa de Lange porque este não comparecera à Sala da Câmara na hora ordenada. Precisando dos serviços do secretário para lavrar contratos, os dois vereadores se dirigiram à casa de Lange, mas esse disse grosseiramente que naquele momento não tinha tempo.

Referências

  1. 1,0 1,1 Ata da Sessão de 16 de janeiro de 1882, em guarda do Arquivo Histórico de Joinville.
  2. 2,0 2,1 2,2 Cópia do recurso de Carlos Lange à presidência da Província, em guarda do Arquivo Histórico de Joinville.
  3. Ata da Sessão de 21 de Janeiro de 1882, em guarda do Arquivo Histórico de Joinville.
  4. Ata da Sessão de 18 de fevereiro de 1882, em guarda do Arquivo Histórico de Joinville.
  5. Provincia de Santa Catarina. Desterro. Expediente. Gazeta de Joinville, 3 de maio de 1882. Visitado em 24/08/2023
  6. 6,0 6,1 6,2 Ata da Sessão de 17 de abril de 1882, em guarda do Arquivo Histórico de Joinville.
  7. Ata da Sessão de 18 de abril de 1882, em guarda do Arquivo Histórico de Joinville.
  8. à Pedido - A Lucta da Camara Municipal de Joinville com o seu Secretário. Gazeta de Joinville, 10 de maio de 1882. Visitado em 24/08/2023
  9. Ficker, Carlos. História de Joinville - Subsídios para a Crônica da Colônia Dona Francisca. Joinville: Impressora Ipiranga, 1965.
  10. S.Thiago, Eneida Raquel. Um Caso de Liderança Luso-Brasileira na Região de Joinville: Abdon Baptista. Orientador: Walter Fernando Piazza. 1983. Dissertação (Mestrado) – Pós-Graduação em História, UFSC - Universidade Federal de Santa Catarina. Visitado em 25/10/2023
  11. Noticias Locaes. Gazeta de Joinville, 19 de julho de 1882. Visitado em 28/08/2023